“Há risco de haver revisão internacional desse julgamento (tão emblemático quanto moral, ética, cultural e politicamente importante)? Sim. Isso é invenção de quem? Do próprio Brasil que assinou tratados internacionais e aceitou a jurisprudência do Sistema Interamericano.”
Mensalão: risco de revisão do
julgamento do STF gera indignação geral
Luiz Flávio Gomes
Como pode uma Convenção ou Tratado Internacional ser superior à
Constituição brasileira? Como pode uma Corte Internacional ser superior ao STF?
Você acha que uma Corte Internacional vai mandar no STF?
Nas centenas de manifestações indignadas com meu artigo
(estritamente jurídico e explicativo) que fala da possibilidade de a decisão do
STF no mensalão ser revisada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
notei um ponto central que ainda não foi bem compreendido no Brasil: como pode
uma Convenção ou Tratado Internacional ser superior à Constituição brasileira?
Como pode uma Corte Internacional ser superior ao STF? Você acha que uma Corte
Internacional vai mandar no STF?
Te convido a “viajar” junto comigo nessa questão. Vamos lá. As
leis brasileiras permitem a prisão civil do depositário infiel? Sim. A
Constituição brasileira autoriza a prisão civil do depositário infiel? Sim. Por
que então ela foi proibida pelo próprio STF na Súmula Vinculante 25? Porque o
art. 7º da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) só permite prisão
civil do alimentante inadimplente.
Quando a Constituição do Brasil conflita com a Convenção Americana
quem manda? Para aqueles não têm formação jurídica ou contam com formação
jurídica ainda em fase de andamento, mandaria sempre a CF. Resposta errada! Nem
sempre. Pode ser que sim, pode ser que não.
Por quê? Porque manda, na verdade, a norma mais favorável aos
direitos e liberdades das pessoas (a norma mais favorável, consoante o
princípio pro homine). Quem disse isso? STF. Onde? No Recurso Extraordinário
466.343-SP.
Por que a proibição da prisão civil para o depositário, prevista
na CADH, foi respeitada, em detrimento (em prejuízo) da CF? Porque mais
favorável. Então o STF segue essa doutrina da norma mais favorável? Sim (é só
ver a Súmula Vinculante 25).
O Brasil está sujeito à jurisprudência do Sistema Interamericano
de Direitos Humanos? Sim. Desde quando? Desde 1998. O Brasil era livre para
aceitar ou não essa jurisprudência? Sim. Se aceitou, agora tem que cumprir o
que a Corte decide? Sim. Por força de qual princípio? Perdoem-me o nomão feio:
pacta sunt servanda (assinou um pacto, agora cumpre). Você não é obrigado a
assinar nenhum documento de que me deve mil reais. Se assinar, cumpra!
Já houve algum caso em que a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (que está em Washington) ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(que está em San Jose da Costa Rica) já tenha condenado o Brasil? Sim. Muitos
casos? Sim. Quais (por exemplo)? Caso Ximenes Lopes, Maria da Penha, Escher,
Septimo Garibaldi, Araguaia etc. Muitos casos. O Brasil está cumprindo essas
decisões? Sim (pagando indenizações, respeitando regras, mudando o direito
interno etc.). Por que o Brasil está cumprindo? Para honrar seus compromissos e
por causa das sanções internacionais possíveis (proibição de exportação de
produtos, por exemplo).
A jurisprudência do Sistema Interamericano é vinculante para o
Brasil? Sim. Por que a jurisprudência brasileira não a segue rigorosamente?
Porque não temos tradição (nem cultura) de respeitar os pactos internacionais
que firmamos. Agora que isso está mudando (pouco a pouco).
Então afirmar que a decisão do mensalão pode ser questionada junto
à Comissão Interamericana é “viajar na maionese” (expressão de um indignado,
dirigida a mim carinhosamente)? Não. Por que não? Porque apontamos casos
concretos já julgados pela Corte internacional que deveriam orientar o
julgamento do STF (Las Palmeras e Barreto Leiva).
Há risco de haver revisão internacional desse julgamento (tão
emblemático quanto moral, ética, cultural e politicamente importante)? Sim.
Isso é invenção de quem? Do próprio Brasil que assinou tratados internacionais
e aceitou a jurisprudência do Sistema Interamericano. Mas as decisões citadas,
contra Colômbia e Venezuela, valem no Brasil? São decisões que formam
precedentes. Nos casos idênticos a Corte vai segui-las.
Mas, e a soberania do Brasil? Todo país que assina um pacto
internacional vai perdendo sua soberania externa, por sua livre e espontânea
vontade (Ferrajoli). Os réus do mensalão poderão conquistar algum benefício no
plano internacional? Podem. Novo julgamento, muito provavelmente. Quem diz
isso? Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, 2, “h”. O que está
escrito aí? O direito ao duplo grau de jurisdição.
O Brasil, quando assinou essa Convenção, fez ressalva desse ponto?
Não. Esse direito vale para todo mundo? Sim. Inclusive para quem tem foro
privilegiado? Sim. Quem disse isso? A Corte disse isso no caso Barreto Leiva,
julgado no final de 2009.
Mas o STF não sabia disso? Muito provavelmente não. Por quê?
Porque não existe tradição sólida na jurisprudência brasileira de respeitar o
direito internacional firmado e aceito pelo Brasil. Tudo isso está mudando?
Sim, lentamente. Então a formação jurídica no Brasil terá que ser alterada
completamente? Sim, urgentemente. Por quê?
Porque toda violação dos nossos direitos previstos nos tratados
internacionais (a começar pelo direito de liberdade de expressão, que nos
permite escrever tudo que quisermos nas redes sociais, desde que não ofenda
terceiros), agora, se não amparada no Brasil, pode ser questionada no plano
internacional, onde temos 7 juízes em Washington e mais 7 juízes na Costa Rica
para nos ouvir (sempre começando pela Comissão, que está nos EUA).
Meus amigos: vamos ficando por aqui na nossa “viagem na maionese”.
Mas me coloco à disposição de vocês para novos esclarecimentos. Avante!
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