Em abril/14 o STF julgou um “ladrão de galinha”.
Agora vai se deparar com um pé descalço cujo sonho era se transformar em um “pé
de chinelo” (HC 123.108). A frase de um camponês de El Salvador, referida por
José Jesus de La Torre Rangel (e aqui difundida por Lenio Streck) é
paradigmática: “La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”.
Isso vale, em grande medida, no Brasil, para a lei penal (em regra, só pica os
descalços).
O Judiciário brasileiro
(tanto nesse caso do par de chinelos como em outros, exemplificativamente o da
subtração de duas galinhas de São João de Nepomuceno-MG, onde ficou vencido o
ministro Marco Aurélio que não concedia o HC para o “ladrão de galinha”),
depois de dezenas de anos em contato e experiência com a degeneração moral da
sociedade e das instituições, degradação essa promovida pela prazerosa
vulgaridade do homo
democraticus (Tocqueville e
Gomá Lanzón), nos seus surtos de desconexão absoluta da realidade, vez por
outra, delibera se desligar do mundo dos humanos. Transforma-se, nesses
momentos, num avatar.
Como já não tem contato
com os humanos (os terráqueos), concede-se licença para se afastar do mundo
tangível e de se expressar numa linguagem metafísica, absolutamente inacessível
à quase absoluta totalidade dos habitantes do planeta azul. Não faz isso por se
julgar superior aos mortais, certamente, sim, por se entender diferente (outro
mundo, outro planeta, outra lógica, outra civilização).
O habeas corpus do “pé descalço” foi denegado pelo STJ
(6ª Turma) com base nos seguintes argumentos (prestem atenção na linguagem): “É
condição sine qua non ao conhecimento do especial que
tenham sido ventilados, no contexto do acórdão objurgado, os dispositivos
legais indicados como malferidos na formulação recursal. Inteligência dos
enunciados 211⁄STJ, 282 e 356⁄STF.”
Tudo isso é fruto de uma inteligência das súmulas 211, 282 e 356 do STF. Que
pena que essainteligência dos
avatares não tem nada a ver com o ideal terráqueo da Justiça ao alcance de
todos (na forma e na substância).
A ementa do julgado (6ª
Turma) prossegue: “Possuindo o dispositivo de lei indicado como violado comando
legal dissociado das razões recursais a ele relacionadas (sic), resta
impossibilitada a compreensão da controvérsia arguida nos autos, ante a
deficiência na fundamentação recursal. Incidência do enunciado 284 da Súmula do
Supremo Tribunal Federal.”
Claro que, aqui na
Terra, para “compreender a controvérsia” e determinar o arquivamento imediato
dos autos relacionados à subtração de um par de chinelos (devolvido, diga-se de
passagem) só dependemos de uma caneta e de uma cabeça terráquea, dotada de
humanidade e sensibilidade. Nada mais que isso.
Para a aplicação ou não
do principio da insignificância (continua a ementa), “devem ser analisadas as
circunstâncias específicas do caso concreto, o que esbarra na vedação do
enunciado 7 da Súmula desta Corte.”
Quais circunstâncias
específicas mais são necessárias além do fato de tratar-se de um par de
chinelos de R$ 16 reais (devolvido) subtraído por um “pé descalço”, que foi
condenado a um ano de prisão em regime semiaberto?
Para
a 6ª Turma o arquivamento desse caso é muito relevante por possuir caráter
constitucional. E a “A análise de matéria constitucional não é de competência
desta Corte, mas sim do Supremo Tribunal Federal, por expressa determinação daConstituição
Federal.”
Seja de que natureza
for, aqui na Terra manda a sensibilidade humana que a subtração de um par de
chinelos de R$ 16 reais deve ser arquivada prontamente, por meio de um habeas corpus de ofício. A matéria constitucional
aqui existente é a dignidade humana, a liberdade, o Estado de direito, a
proporcionalidade, a razoabilidade etc. Em síntese, tudo que os avatares
desconhecem.
Há momentos que dá
vontade de copiar, aqui no Brasil, aquela criança que, no Uruguai, no tempo da
ditadura (criticada por Eduardo Galeano), pediu a sua mãe que a levasse de
volta para o hospital porque ela queria “desnascer”!