Atahualpa Fernandez
Elaborado em 07/2012.
A
contundente mensagem que se deve enviar àqueles que estão governando é a de que
não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo: que a indiferença e
a falta de uma adequada, constante e comprometida atuação estatal não é (e não
deve ser) a regra.
“Não se pode ser um pepino
doce em um barril de vinagre.” P. ZIMBARDO
A compreensão que tenho da Moral e do Direito carece da mais
mínima sintonia com esse tipo de delinquência. Digamos que minhas intuições e
valores morais me predispõem contra qualquer indício de corrupção em qualquer
de suas modalidades e sucedâneos. O direi de modo que elimine qualquer
ambiguidade ao respeito: um bloco de cimento está mais perto de ter e experimentar
uma atitude compassiva ou compreensiva em relação a esse tipo de delinquência
que eu. Uma espécie de repugnância instintiva, como a visão ou o contato com
uma chaga purulenta. Um tipo de comportamento que resulta nauseabundo para
qualquer concepção acerca de um “sentido moral” no ser humano.
Aristóteles, em seus debates sobre a moralidade, insiste nas
habilidades pessoais e sociais para prosperar no âmbito moral. Segundo esta
perspectiva, a aquisição e o exercício das habilidades morais depende da
prática (social) de hábitos adequados, e pode ver-se influenciado pelos
modelos, as práticas sociais e as instituições que encontramos na vida diária.
E entender a moralidade como um tema essencialmente prático e resultado de um
longo treinamento nos recorda a enorme importância que tem as habilidades que
diariamente costumamos exercer sem esforço, de modo fluído e contumaz, como uma
virtuosa extensão de nosso caráter e de nossa vontade.
O problema é que a maioria das pessoas dá por descontado que
embora levem a cabo condutas social e moralmente reprováveis, continuam a crer
que são boas, que são distintas, que são melhores, diferentes ou superiores. Construímos
umas idéias preconcebidas interessadas e egocênctricas que melhoram a imagem
que temos de nós mesmos e que fazem com que nos sintamos especiais, nunca
normais e correntes, sempre “por encima da média” em qualquer prova de
integridade pessoal. Esses prejuízos cognitivos e egocêntricos desempenham uma
função valiosa porque reforçam nossa auto-estima e alimentam nossa sensação de
invulnerabilidade moral. Nos permitem justificar nossas faltas, atribuir-nos o
mérito de nossos êxitos e eludir a responsabilidade de nossas más decisões,
fazendo-nos ver nosso mundo subjetivo através de uma lente multicolor (P.
Zimbardo, 2007).
A maioria das pessoas se nega a reconhecer que embora a virtude se
exerça de maneira unificada em um conjunto de situações significativas, em
determinadas situações podem existir forças externas e internas potentes, mas
sutis, com poder potencial de transformá-las. Se negam a admitir que certos
estados de coisas influem em nossos próprios estados motivacionais alterando o
comportamento e que é necessário uma grande disposição e força de vontade para
paliar as falhas do autocontrole. Não somos os mesmos quando trabalhamos a sós
ou quando o fazemos em grupo, quando estamos entre amigos ou entre pessoas
desconhecidas, quando nos encontramos em uma situação romântica ou em um
ambiente de trabalho[1].
A questão, portanto, reside em saber o que impulsa a conduta
humana. O que determina nossos juízos morais? O que faz com que algumas pessoas
levem uma vida reta e honrada e que outras pareçam cair com facilidade na
imoralidade e o delito? Que fatores ou influências guiam nossos pensamentos,
nossos sentimentos e nossos atos para o bom ou o mau caminho? Até que ponto
nosso comportamento moral está à mercê da situação e do momento em que nos
encontramos?
(...)
Sobre a definição de
corrupção
O fenômeno estendido da corrupção pode ser analisado desde
distintas perspectivas. A primeira que salta à vista é a moral. Mas esse
enfoque moral pode variar desde uma relativamente simples convicção de rechaço
ao roubo, da apropriação de algo que não pertence ao agente corrupto, até uma
maior consciência das consequências
desse tipo de depredação social, entre as quais está a certeza do sofrimento ou
miséria de alguém que o agente corrupto não necessariamente conhece e de quem,
geralmente, não verá jamais seu rosto.
Para o que aqui interessa, me limitarei a analisar este último
enfoque, isto é, do comportamento corrupto como uma forma perversa e diluída de
genocídio social, nomeadamente no que se refere à conduta de indivíduos
vinculados à administração pública que, no uso de suas prerrogativas
funcionais, direta ou indiretamente, obtêm e utilizam de forma fraudulenta,
desonesta e imoral recursos ou meios públicos para enriquecimento pessoal. Dito
de modo mais simples: do comportamento corrupto (ou da corrupção) como “crime
contra a sociedade”, para usar a expressão de Leonardo Boff.
Filosofia moral experimental: O velho dilema do “trem assassino” e
do “afogamento”
(...)
Portanto, no caso de comportamento corrupto, o abuso do poder não
é o único que saca a reluzir nossas tendências desonestas. A impessoalidade
e/ou a distância psicológica do agente em relação aos membros “invisíveis” da
sociedade também parece facilitar a prática de atos corruptos. Conclusão: um
agente corrupto está sempre disposto a enriquecer-se como uma impessoal máquina
de caça-níqueis, mas seguramente não estaria disposto a enriquecer-se
utilizando uma arma e/ou provocando pessoalmente o sofrimento de membros
desconhecidos de uma comunidade.
Comportamento corrupto: impessoalidade e indiferença emocional
De todas essas investigações se depreende uma conclusão muito
importante: qualquer coisa ou qualquer situação que faça com que um indivíduo
se sinta distante psicologicamente ou que lhe provoque um sentimento de
impessoalidade com a miséria e o sofrimento dos demais, reduz seu sentido da
responsabilidade pessoal e, em consequência, faz possível que possa atuar com
maldade. E esta possibilidade aumenta quando se acrescenta outro fator: se a
situação, sua função institucional ou alguma autoridade lhe dá permissão para
atuar de maneira anti-social ou desonesta contra outras pessoas, o agente corrupto
seguramente estará disposto, inclusive,
a “fazer a guerra” em benefício próprio.
De fato, essa sensação de impessoalidade somada ao exercício de
uma função institucional tem múltiplas consequências para o agente corrupto,
entre elas a suspensão da consciência em geral e da consciência de si mesmo, do
sentido de responsabilidade pessoal, da obrigação, do compromisso, da
moralidade, do sentimento de culpa, da vergonha e do medo, assim como da
análise dos próprios atos em função de seus custos e benefícios.
Em última instância, reduz-se o interesse do agente corrupto em
auto-avaliar-se, projetando sua responsabilidade para o exterior, para as
circunstâncias ou os demais, em lugar de dirigi-la ao interior, para si mesmo,
para as deficiências e defeitos de seu próprio caráter. Já não há um sentido do
bem nem do mal, não há sensação de culpabilidade por atos ilegais nem infernos
por atos imorais. Quando os controles internos se suspendem, a conduta se acha
por completo sob o controle externo da situação; o exterior se impõe ao
interior. O que é possível e está disponível se impõe ao correto, ao bom e ao
justo.
Chegado a esse ponto, a bússola moral das pessoas perde o norte.
As limitações habituais da maldade e dos impulsos desonestos se diluem nos
excessos da impessoalidade. O cinismo se impõe por encima do nível moral que
reservamos a nossos congêneres verdadeiramente humanos. Em resumo, não há aqui
a menor consideração à advertência de Demócrito de que em um ato de maldade
devemos envergonhar-nos principalmente diante de nós mesmos e que há uma regra
que deve figurar como lei às portas da alma: “nada hacer que sea indigno”.
O que podemos fazer?
Se Dante Alighieri pudesse regressar, que círculo do inferno
reservaria aos agente corruptos? Para Dante, os pecados que brotam desta raiz
são os piores, os “pecados do lobo”, a condição espiritual de ter no interior
de si mesmo um buraco negro tão profundo que nunca se poderá completar com
quantidade alguma de poder ou de dinheiro. Para os que sofrem desse mal mortal,
o que existe fora do ego só tem valor se o ego pode apropriar-se dele ou
explorar-lhe. No inferno de Dante os culpáveis deste pecado se acham no nono
círculo, congelados no lago de gelo. Por não haver-se ocupado em vida de outra
coisa salvo de si mesmos, estão presos em um ego gelado para toda a
eternidade.
(...)
Quanto tempo tardaremos para entender que a pobreza, a ignorância,
a “decadência” do sistema de ensino e saúde pública e as desigualdades não são
meramente males em si mesmos, senão uma consequência direta do desbarate
egoísta e da usurpação pessoal dos recursos públicos? Quanto de dignidade ainda
nos custará assumir a dimensão real das cifras de escândalos sobre corrupção
que quase diariamente assolam o País ou do perigo que representa para uma
democracia quando um regime tendencialmente autoritário e manifestamente
populista ocupa todos os espaços e obriga ao Judiciário a humilhar-se ante o Executivo?
Parece haver chegado o momento de lutar contra e eliminar este
tipo de prática perversa, a despeito das boas intenções, dos interesses corporativos
e/ou políticos em jogo; para tratar de restabelecer a confiança, a virtude e a
honradez pública de um Estado impotente e ineficaz, que continua a distribuir
de forma tão grosseiramente desigual recursos, oportunidades e riqueza, e de
forma tão incivil como escassa a liberdade, assistência sanitária, a educação e
a segurança pública. Como recorda Frei Betto (2011) ao falar sobre a corrupção
brasileira, “las instituciones deben ser suficientemente fuertes, las
investigaciones rigurosas y los castigos severos. La impunidad hace al
delincuente. Y en el caso de los políticos a ésta se le añade la inmunidad”.
Perguntar-se como combater e eliminar o comportamento
corrupto é, em boa medida e
especialmente, considerar a possibilidade de dizer não a um tipo de conduta
política e administrativa deplorável, de dissimulação e de intolerante
intransigência que parece só saber bazofiar do problema da impunidade e da
moralidade. É exigir a disposição, o compromisso e a valentia dos que
efetivamente dispõem das condições institucionais favoráveis para tanto. É
reclamar que as instituições não sejam indiferentes ao cinismo político que
trata de despolitizar e/ou não priorizar o combate ao fenômeno da corrupção
pela via da banalização inespecífica. É recordar que não há um problema de
corrupção política, distinto do problema da corrupção administrativa, distinto
do problema da corrupção econômica privada, etc. É, depois de tudo, adotar a
célebre exclamação de Lutero: “não posso mais, aqui me detenho!”.
A contundente mensagem que se deve enviar àqueles que estão
governando é a de que não é insignificante ou “sem sentido” o que está
sucedendo: que a indiferença e a falta de uma adequada, constante e
comprometida atuação estatal não é (e não deve ser) a regra. Que o comportamento
corrupto já não é uma exceção em um universo de moralidade e que, se assim for,
as exceções servem precisamente para confirmar que a regra é errônea (R.
Feynman, 1998). Que a simples suspeita de que algo vai realmente mal já
constitui razão suficiente para atuar e castigar sem piedade os verdadeiros
responsáveis por uma situação que já começa a acariciar os limites da
degradação moral e política.
Artigo completo
em:
http://jus.com.br/revista/texto/22251/comportamento-corrupto-e-pensamento-moral/1
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