“Recentes episódios policiais demonstram que o estado do Espírito
Santo está altamente comprometido com a preservação do meio ambiente. Dois
perigosos infratores foram presos em flagrante, no dia 22 de Maio, enquanto
praticavam grave crime contra a fauna aquática.
Atuando
descaradamente, os delinquentes foram surpreendidos com quase dois quilos de
peixe em plena Baía de Vitória.”
Enquanto isso...
Presos ao pescar: ironias de um estado (in)eficiente
Israel Domingos Jorio
Eis uma notícia que nos parece estarrecedora. Uma notícia que, nem
nos países mais rigorosos do mundo, ou tampouco naqueles mais comprometidos com
as questões ambientais, deveria ser lida com tom de aprovação.
Pedimos ao leitor que considere a seguinte manchete: “Presos ao
pescar: 26h na cadeia. E acorrentados. Desempregados foram detidos com 2kg de
peixe em Vitória”.[1]
Do corpo da notícia, extraímos o seguinte: “Os desempregados
Valmir Santos, 45 anos, e Rodrigo Dantas de Almeida, 27, deixaram a prisão, ontem
à noite. Eles ficaram 26 horas atrás das grades, algemados e sem comer,
acusados da pesca ilegal de dois quilos de peixe. Os dois foram flagrados pela
Polícia Ambiental na área da Estação Ecológica do Lameirão, na região da Ilha
da Pólvora, na Baía de Vitória, na tarde de terça-feira. [...] Algemados pelos
pés e presos por correntes a uma barra de ferro, Valmir e Rodrigo permaneceram
no Departamento de Polícia Judiciária (DPJ) da Capital, sem comer, até as
18h50. Nesse horário, chegou o alvará de liberdade provisória.”
Eis uma notícia que nos parece estarrecedora. Uma notícia que, nem
nos países mais rigorosos do mundo, ou tampouco naqueles mais comprometidos com
as questões ambientais, deveria ser lida com tom de aprovação.
Em um país com políticas criminais tão absurdamente hipócritas,
como o Brasil, o fato mais parece uma piada de mau gosto. Se quisermos
amenizar, para fugir da sensação de que tudo se deu pela mais pura maldade,
acabaremos enxergando, no mínimo, uma grande ironia. Uma ironia que pede uma
resposta irônica.
Em um país com esse tipo de prática, temos ainda grande sorte de
que os meios de comunicação não estejam subjugados ao controle total do Estado,
como já vimos acontecer nas épocas das “propagandas” e “agendas” impostas pelo
governo em alguns dos períodos mais obscuros da história da humanidade. Fosse
esse o caso do Brasil, atualmente, cremos que a notícia seria dada mais ou
menos assim:
“Recentes episódios policiais demonstram que o estado do Espírito
Santo está altamente comprometido com a preservação do meio ambiente. Dois
perigosos infratores foram presos em flagrante, no dia 22 de Maio, enquanto
praticavam grave crime contra a fauna aquática.
Atuando descaradamente, os delinquentes foram surpreendidos com
quase dois quilos de peixe em plena Baía de Vitória. Ambos alegaram tratar-se
de pesca para consumo pessoal, mas a polícia, fazendo uma inteligente analogia
com a lei de drogas, considerou a grande quantidade da substância apreendida,
as circunstâncias do crime e as circunstâncias sociais e pessoais, e descartou
a desculpa esfarrapada. Até mesmo porque foram apreendidas ferramentas do crime
que indicam maior lesividade e certo profissionalismo (molinete). A esposa de
um dos detidos, tentando amenizar a gravidade do ato e dramatizar a situação,
declarou que "Quando a gente não tem condições, não tem uma carne ou um
ovo para dar a nossa filha de cinco anos para comer, ele vai pescar. Eu acho
isso uma injustiça”.
A polícia se revelou altamente eficaz na condução dos meliantes,
que tiveram a oportunidade de repousar nas instalações da delegacia. A despeito
da elevada periculosidade dos agentes, foi-lhes conferida a regalia de não
pernoitar em cela superlotada, adotando-se, como medida de natural precaução,
apenas o acorrentamento pelos pés. Por não terem efetivamente ficado presos,
foi-lhes justificadamente negado o direito à refeição. Por uma lastimável
brecha do sistema, porém, voltou a imperar a impunidade.
Fazendo uso de estratagemas e aproveitando-se da brandura da lei,
advogados conseguiram devolver às ruas os meliantes, que não poderão ser
considerados culpados até o trânsito em julgado de uma sentença condenatória.
A atuação policial foi um exemplo de diligência para todo o
Brasil. Estima-se que apenas cerca dez por cento dos homicídios ocorridos na
Grande Vitória sejam objeto de apuração, mas a aparente ineficiência se vê,
agora, plenamente justificada, já que as forças do Estado estão concentradas na
importante tarefa da preservação do meio ambiente. Enquanto no estado do
Amazonas são desmatadas áreas equivalentes a cem campos de futebol por dia, o
Espírito Santo mostrou-se implacável na repressão do massacre daqueles quatro
peixes.
Indagadas as autoridades sobre se o trânsito e a permanência de
transatlânticos no local não seriam bem mais danosos àquele bioma, prontamente
responderam que não há comprovação científica de que o óleo e os dejetos ali
deixados sejam prejudiciais à saúde dos animais aquáticos, tampouco que os
motores impeçam ou perturbem a reprodução de várias espécies (diferentemente do
que já se provou ocorrer com canoas e pequenos barcos com motores de popa,
altamente ofensivos ao equilíbrio daquele habitat marinho).
Especialistas indicam que a defesa dos criminosos deve tentar
beneficiá-los com alegações da espécie "erro de tipo", "erro de
proibição" ou outras falácias jurídicas. É que os infratores disseram não
conhecer a vedação da pesca no local, questionando a falta de advertência por
meio de placas. Mas deve prevalecer a orientação de que "todos devem
conhecer as leis" (por mais que sejam incompletas e dependam da consulta
de diversas resoluções, portarias e provimentos avulsos, espalhados por órgãos
públicos federais, estaduais e municipais).
Pode ser, também, que seja arguido o Princípio da Insignificância,
mas rechaçam de plano a possibilidade de sua incidência porque nem mesmo um
único ser vivo deve ser considerado insignificante. Trata-se de dever do Estado
tutelar todos os animais, segundo a clara e objetiva lei dos crimes ambientais.
Discute-se, agora, se essa tutela não deveria estender-se, também, aos animai
Nota
[1]Fonte: Portal Gazeta Online. Disponível em
http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2012/05/noticias/a_gazeta/dia_a_dia/1246202-presos-ao-pescar-26h-na-cadeia-e-acorrentados.html.
23/05/2012 - 22h49 - Atualizado em 23/05/2012 - 22h49. A Gazeta.
Retirado de:
http://jus.com.br/revista/texto/21896/presos-ao-pescar-ironias-de-um-estado-in-eficiente#ixzz1wUlM0cxj
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