“Forçoso observar, ainda, que durante tempo e espaço
considerável, os atos praticados pelos delegatários dos serviços notariais e
registrais, produzem efeitos jurídicos, não raras vezes, superiores à própria
vida de seus autores, e estes podem ou não ter sido agraciados com recursos
suficientes para reparar eventuais danos causados a terceiros durante suas
gestões.”
“Não seria censurável, portanto, advogar pela tese da
responsabilidade objetiva do Estado pelos atos danosos de seus delegatários,
doutrina esta que se mostra mais adequada à idealização constitucional do
instituto da responsabilidade civil Estatal.”
A responsabilidade civil de notários e registradores
Bruno Francisco Prado
Rocha*
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O Estado seria objetivamente responsável por indenizar o terceiro
prejudicado, por ser este o titular real da atividade delegada, cabendo-lhe
obrigatória ação de regresso contra o delegatário, pela responsabilidade
subjetiva.
A evolução continuada do Direito, modulada por transformações
processadas por um atuante poder legiferante e por visionárias e sensíveis
interpretações judiciais – quanto aos princípios jurídicos que em sua órbita,
por vezes, colidem-se, e à aplicação e ao alcance dos efeitos das normas
constituídas – é o que positivamente se espera de um Estado Democrático de
Direito.
A sociedade cria o Direito, estabelecendo diretrizes verificáveis,
conduzindo-se por suas necessidades e desejos, seus freios e contrapesos.
Neste contexto, insere-se a atividade notarial e registral
contemporânea – contígua ao vigente ideário princípio-normativista
constitucional, marchante rumo à moralidade e à Função Social dos atos e fatos
atinentes à Administração Pública – como notável expoente de um saber jurídico
moderno, participativo e integrador, em uma eterna busca da segurança jurídica
para os atos de uma sociedade ainda carente de respeito e de harmonia social.
A vontade popular se preocupou com os caminhos trilhados pelos
Tabelionatos e Registros Públicos, a começar pela mudança no que tange ao
ingresso na atividade, privilegiando a ideologia do mérito[1] para o ingresso
em órgãos estatais, com a observância dos princípios da legalidade,
impessoalidade e igualdade, moralidade e eficiência[2], privilegiando os
melhores para a assunção de funções públicas, contrapondo-se ao retrógado e
injusto privilégio hereditário e de apadrinhamento político, passando a exigir,
ainda, que tais serviços lhes fossem prestados de forma segura, apropriada,
eficiente e eficaz, norteados pela cordialidade e urbanidade de seus
prestadores.
É precisamente o que nos doutrina o § 3º, do art. 236, da CR/88,
determinando que o ingresso na atividade notarial e de registro depende de
concurso público de provas e títulos, respeitando-se a ordem de classificação,
não se permitindo que haja vacância, por mais de seis meses, de qualquer
serventia, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, vez que
conforme indubitavelmente disciplinado no caput do referido artigo, os serviços
notariais e de registro são públicos, não obstante, exercidos em caráter
privado por delegação do Poder Público.
Procedidas estas considerações, é de se salientar que cabe a este
Público Poder, com exata observância dos princípios e normas jurídicas
reguladoras da matéria, a outorga da delegação dos serviços notariais e registrais
aos particulares, de forma originária e pessoal, restando, portanto,
contextualizada a restrição da responsabilidade dos delegatários apenas aos
atos que forem praticados, pessoalmente ou por seus prepostos escolhidos,
durante o período em que estiverem à frente da serventia que lhes foi delegada,
não sendo responsáveis, por conseguinte, pelos atos pregressos praticados pelos
titulares anteriores, bem como quanto aos seus efeitos observados no tempo e
espaço.
Destaca-se, ademais, que não é o “cartório” que é delegado ao
particular para ser exercido em caráter privado, mas sim os serviços, as
atividades notariais e registrais, de caráter eminentemente público e de amplo
interesse social para a coletividade.
O “cartório”, portanto, seria apenas abstração
jurídico-conceitual, estrutura patrimonial não revestida de personalidade
jurídica, parte ilegítima para figurar no pólo ativo ou passivo de demandas
judiciais. Este é o entendimento predominante atualmente em nossa Corte
Superior, fruto de dignas absorções evolutivas procedentes de decisões
judiciais difusas, sensíveis e renovadoras do Direito.
Neste diapasão, o Acórdão proferido no Agravo de Instrumento nº
0000394-29.2010.8.19.0009, da Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro, Relator: DES. MILTON FERNANDES DE SOUZA, passim, citando
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, de lapidar contorno, ensina-nos
que
o tabelionato não detém
personalidade jurídica ou judiciária, sendo a responsabilidade pessoal do
titular da serventia. No caso de dano
decorrente de má prestação dos serviços notariais, somente o tabelião à época dos fatos e o Estado possuem legitimidade passiva”. REsp nº
545.613/MG (4ª Turma, Relator Ministro César Asfor Rocha, DJ de 29/06/2007.
(grifo nosso).
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO SERVENTIA EXTRAJUDICIAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. CARTÓRIO NOTARIAL E REGISTRAL.
ILEGITIMIDADE PASSIVA. O cartório não tem personalidade jurídica e por isto,
não tem capacidade processual para figurar no pólo passivo, embora o notário
responsável o possa. Em que pese a atividade do notário, seja exercida por
delegação do Poder Público e sobre a fiscalização deste, é de caráter privado.
Sendo assim, a responsabilidade daquele é pessoal, individual, pelos próprios
atos ou pelos atos de seus prepostos e, em conseqüência, não abrange os atos de
seus antecessores. RECURSO DESPROVIDO. 0003549-73.2003.8.19.0045
(2004.001.18747 – DES. JORGE LUIZ HABIB – Julgamento: 14/09/2004 – DÉCIMA
OITAVA CÂMARA CÍVEL/RJ.
Quanto à responsabilidade
civil do Estado, a sociedade optou pela apuração objetiva da
mesma, notadamente observada pelo regramento normativo entalhado no § 6º, do
art. 37, da CR/88, regulamentador da responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público
e as de direito privado prestadoras de serviços públicos,
devendo estas pessoas jurídicas
de direito privado – vinculadas
ao Estado, especialmente pelo condão dos institutos da permissão ou concessão – responder
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros,
assegurando o direito de regresso contra o responsável efetivo pelo ato, nos
casos de dolo ou culpa.
Destaque-se que esta
concepção não deve ser aplicada às serventias
notariais e registrais, conforme já pacificado no Supremo Tribunal
Federal[3], vez que as mesmas não são detentoras reais destes
importantes serviços prestados aos usuários, não são pessoas jurídicas de
direito público, e muito menos sociedades empresárias prestadoras de serviços
públicos.
Nota-se que ao se tentar
enquadrar os delegatários de serviços notariais e registrais nos preceitos
constitucionais que regulam a responsabilidade
objetiva dos agentes
que prestam serviço público, de formaprivada[4], conclui-se pela idéia de se tratar tais
delegatários, de agentes sui generis,
marcados por peculiaridades próprias que os colocam em categoria jurídica
singular, afastando, desta forma, a aplicabilidade do referido diploma legal às
atividades públicas delegadas em questão[5].
Forçoso observar, ainda,
que durante tempo e espaço considerável, os atos praticados pelos
delegatários dos serviços notariais e registrais, produzem efeitos jurídicos,
não raras vezes, superiores à própria vida de seus autores, e estes podem ou
não ter sido agraciados com recursos suficientes para reparar eventuais danos
causados a terceiros durante suas gestões.
Não seria censurável,
portanto, advogar pela tese da responsabilidade objetiva do
Estado pelos atos danosos de seus delegatários, doutrina esta que se mostra
mais adequada à idealização constitucional do instituto da responsabilidade
civil Estatal.
Há posicionamentos
doutrinários sólidos, inclusive do Des. RICARDO DIP, que refutam a tese de os
delegatários de serviços notariais e registrais se submeterem às sanções do §
6º, do art. 37, da CF/88, vez que não poderiam se equiparar às pessoas jurídicas ou sociedades empresariais.
Tanto o é assim que a
responsabilidade dos delegatários – pessoas naturais – deve se limitar apenas aos atos
praticados durante sua gestão, vinculando-se a responsabilidade civil ao
caráter pessoal do prestador dos serviços. Cediço é
que a pessoalidade da
responsabilidade é característica das pessoas naturais, escolhidas
pelo Poder Constituinte para representar com exclusividade o Estado na prática
das atividades notariais e registrais.
Ainda, segundo ASSUMPÇÃO[6],
no que se refere à responsabilidade civil dos delegatários, há três correntes
doutrinárias que ainda ensaiam decisões colidentes em nossos Tribunais.
Uma primeira corrente – patrona
da responsabilidade objetiva dos titulares de delegação – que vem
perdendo alento e atração entre nossos julgadores e doutrinadores – pela qual a
reparação de danos causados a terceiros, direta ou indiretamente, deve ser
apurada apenas pela constatação do dano e seu nexo de causalidade com o ato,
cabendo aos titulares das serventias, o eventual direito de regresso contra
seus prepostos, sob a responsabilidade subjetiva.
Contudo, há diversas
decisões judiciais acompanhando uma segunda corrente que, ao contrário da primeira,
entende ser subjetiva a responsabilidade dos delegatários
pela prática de atos causadores de danos a terceiros, havendo a necessidade de
o prejudicado provar cabalmente o dano, nexo de causalidade e a culpa ou dolo
do titular responsável pelo ato para se exigir a reparação.
Exalta-se, ademais, uma terceira corrente –
mais afinada com a evolução natural da sociedade e do Direito contemporâneo –
firmando o entendimento no sentido de que os atos dos serviços notariais e
registrais que causarem prejuízos a terceiros, submetem-se à responsabilidade objetiva do Estado, cabendo ao mesmo, em
ação de regresso, pleitear obrigatoriamente do titular, sob a égide da responsabilidade subjetiva, o ressarcimento da indenização
efetuada à vítima do dano, apurando-se eventual responsabilidade administrativa,
cível e criminal de seu agente delegado.
Nestes termos, destacam-se algumas normas direcionadoras do
tema. Primeiramente, necessário se observar o estabelecido no art. 28, da Lei
6.015/73, cuja interpretação deve-se amoldar às importantes conquistas
interpretativas do Poder Judiciário, decretando que:
Além dos casos
expressamente consignados, os oficiais são civilmente responsáveis por todos os
prejuízos que, pessoalmente, ou pelos prepostos ou substitutos que indicar,
causarem, por culpa ou dolo,
aos interessados no registro. (grifo nosso).
Ao se regulamentar o § 1º, do art. 236, da CR/88, com a
edição da Lei 8.935/94, criou-se enorme divergência doutrinária e
jurisprudencial quanto à responsabilidade civil e criminal dos delegatários, em
função da redação do artigo 22, que assim sanciona:
Os notários e oficiais de
registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros,
na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de
regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos. (grifo nosso).
Aos que entendem se tratar
de responsabilidade objetiva dos delegatários e subjetiva apenas
para osprepostos, pelo exposto no art. 28, da Lei 6.015/73, haveria apenas uma
adequação da nova norma, ou na pior das hipóteses, tal artigo, numa
interpretado direcionada pela responsabilidade subjetiva do
delegatário, estaria revogado de forma tácita.
Por lapso temporal
considerável, entendeu parte significativa do Judiciário, que somente haveria
responsabilidade subjetiva aos prepostos, não havendo espaço para
interpretação que a estendesse aos delegatários, que responderiam sempre objetivamente, conforme ocorre em apurações calcadas no art.
37, § 6º, da CR/88.
Todavia, existem os que
entendem que o art. 22, Lei 8.935/94, sistematicamente interpretado, amolda-se
perfeitamente ao art. 28, da Lei 6.015/73, estendendo a subjetividade da
responsabilidade, tanto aos titulares quanto aos prepostos, de forma que, em
todos os casos, haveria a necessidade da apuração da responsabilidade com a
comprovação do dano, seu nexo de causalidade com o ato praticado, bem como o
dolo ou a culpa do delegatário. Portanto, não haveria revogação da regra
estatuída na Lei 6.015/73, mas sim, mera justaposição legal.
Neste contorno, resta-nos destacar o art. 38, da Lei
9.492/97 que, em sentido gramatical mais preciso, doutrina:
“Os Tabeliães de
Protestos de Títulos são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que
causarem, por culpa ou dolo, pessoalmente,
pelos substitutos que designarem ou Escreventes que autorizarem, assegurado o
direito de regresso”. (grifo nosso).
Vê-se, neste último
regramento, cronologicamente mais recente que os anteriores, que o legislador
se pautou pelo conceito da responsabilidade
subjetiva de
tais delegatários, contrapondo-se expressamente à idéia daresponsabilidade
objetiva.
Entendimento em sentido
diverso, acatando-se ofuscadamente a normatização positivista –
já superada por axiomas derivados de uma evolução hermenêutica natural –
acarretaria em um tratamento não isonômico entre o delegatário do tabelionato
de protesto e os demais notários e registradores, diferenciação esta que não se
deve abonar.
Dessa forma, concluindo-se
pela responsabilidade subjetiva dos delegatários, aplicando-se a terceiracorrente aos casos de responsabilidade civil –
linhas atrás explanada – concomitantemente à regra do art. 37, § 6º, da CR/88,
no que não lhe for contrária, haver-se-ia uma lógica legal de cadeia de
regressos.
O Estado seria objetivamente responsável
por indenizar o terceiro prejudicado, por ser este o titular real da atividade
delegada, cabendo-lhe obrigatória ação de regresso contra o delegatário,
pela responsabilidade subjetiva e em
respeito ao devido processo legal, devendo ser provado quanto ao
mesmo o dolo ou a culpa, e este teriafacultativa ação
de regresso contra seu preposto, se for o caso, apurando-se a responsabilidade subjetiva pelo
ato gerador do dano observado.
Por fim, mas de não menor
importância, destaca-se que notários e registradores em geral, não são capazes
de securitizar todos os atos que são praticados em
suas serventias. Não lhes são exigidos, quando da outorga da delegação pelo
Poder Delegante, nenhuma caução para o exercício desta atividade jurídica,
diferentemente do que se observa quanto às exigências procedidas nos institutos
da permissão e concessão.
Ao optar o Estado pela não
exigência de garantia real dos delegatários para prática de atos de tamanha
importância social – apenas orientando
e fiscalizando-os – com
a finalidade de viabilizar tais serviços à sociedade – muitas vezes de forma gratuita – atraiu para si a responsabilidade direta por
todo dano gerado por esta atividade delegada, com conseqüente repulsa à
aplicação das sanções do art. 37, § 6º, da CR/88 aos notários e registradores,
por total inadequação ao fim social perseguido.
Destarte, a vítima do dano
poderia se frustrar pela falta de recursos do responsável pelo ato danoso,
mesmo após percorrer toda a extensão judicial, dificultada pela apuração subjetiva da
responsabilidade do delegatário.
Pelo desejo social
normatizado, prudente é o entendimento que concede à vítima do dano o direto de
acionar diretamente o Estado, real detentor de tais serviços, por lhe ser mais
benéfico e menos oneroso, vez que neste caso se apuraria a responsabilidade objetiva, o que se mostra mais coerente com o nosso sistema
constitucional[7].
Em complementação ao
defendido nesta apertada síntese, de forma a se evitar onerosas disputas pelos
corredores judiciais e em consonância ao Poder de Polícia do Judiciário,
dever-se-ia haver alguma espécie desecuritização[8] dos
atos notariais e registrais.
Como exemplo, poderia se
reservar parte dos valores recolhidos a título de Taxa de Fiscalização Judiciária[9] ou qualquer outra Taxa cobrada a
título de Poder de Polícia,
para a criação de um fundo garantidor do risco inerente à atividade, não como
forma de estimular uma eventual irresponsabilidade dos delegatários, vez que
haveria obrigatória ação de regresso em desfavor dos
mesmos, mas para garantir ao Estado – entendido aqui como o administrador da
vontade e dos anseios populares, garantidor final do ideal de Justiça Social –
um mecanismo eficiente para resguardar direitos de terceiros prejudicados, em
atenção à realidade e necessidades prementes das variadas relações
interpessoais de uma sociedade, digna condutora de um Direito em constante
evolução.
Fonte:
*Bruno Francisco Prado Rocha
Oficial Registrador e Notário da Serventia de Fortuna de Minas(MG).
Bacharel em Direito desde 2003. Pós-graduado em Direito Empresarial pela FADOM
– 2004. Pós-graduando em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Milton
Campos.
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