Rômulo de Andrade Moreira
Não desconhecemos nem negamos a existência de organizações
criminosas, inclusive em nosso País, mas é preciso que, antes de qualquer
coisa, dê-se um conceito legal para aquelas estruturas criminosas.
Na sessão do dia 12 de junho deste ano de 2012, a Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº. 96007, decidiu
“trancar” um processo no qual os pacientes respondiam pela suposta prática do
crime de lavagem de dinheiro por meio de organização criminosa, previsto no
inciso VII do artigo 1º da Lei 9.613/98. A decisão foi unânime. A denúncia do
Ministério Público “revelava a existência de uma suposta organização criminosa,
comandada pelos pacientes, que se valeria da estrutura de entidade religiosa e
de empresas vinculadas para arrecadar grandes valores em dinheiro, ludibriando
os fiéis mediante variadas fraudes, desviando os numerários oferecidos para
determinadas finalidades ligadas à igreja em proveito próprio e de terceiros,
além de pretensamente lucrar na condução das diversas empresas, desvirtuando as
atividades eminentemente assistenciais e aplicando seguidos golpes.” No habeas
corpus a defesa alegou “que na própria Lei nº. 9.613/98 diz que para se
configurar o crime de lavagem de dinheiro é necessária a existência de um crime
anterior, que a denúncia aponta ser o de organização criminosa. Para o
advogado, contudo, não existe no sistema jurídico brasileiro o tipo penal
organização criminosa, o que levaria à inépcia da denúncia.”
Esta matéria voltou novamente a julgamento com a apresentação do
voto-vista da Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha que, em novembro de 2009,
havia pedido vista dos autos após os votos dos Ministros Marco Aurélio
(relator) e Dias Toffoli, favoráveis ao encerramento do processo. Na sessão do
dia 12 de junho, a Ministra Cármen Lúcia votou da mesma forma, concedendo a
ordem e, na sequência do julgamento, os Ministros Luiz Fux e Rosa Weber também
se manifestaram nesse sentido. A Ministra Cármen Lúcia ressaltou “a atipicidade
do crime de organização criminosa, tendo em vista que o delito não consta na
legislação penal brasileira.” Ela afirmou “que, conforme o relator, se não há o
tipo penal antecedente, que se supõe ter provocado o surgimento do que
posteriormente seria “lavado”, não se tem como dizer que o acusado praticou o
delito previsto no artigo 1º da Lei 9.613/98”. De acordo com a Ministra, a
questão foi debatida recentemente pelo Plenário do Supremo, que concluiu no
sentido do voto do Ministro Marco Aurélio, ou seja, de que “a definição
emprestada de organização criminosa seria acrescentar à norma penal elementos
inexistentes, o que seria uma intolerável tentativa de substituir o legislador,
que não se expressou nesse sentido”. “Não há como se levar em consideração o
que foi denunciado e o que foi aceito”, concluiu. (Grifo nosso).
Antes de qualquer consideração, louvemos a acertada decisão da
Turma do Supremo Tribunal Federal, pois atentou para o princípio da legalidade,
absolutamente inafastável em um Estado Democrático de Direito, ainda mais
quando se trata de estabelecer uma exata definição acerca de uma estrutura
criminosa, que permite ao Estado autorizar contra o indivíduo, ainda
presumivelmente inocente, atos investigatórios invasivos de sua privacidade.
Evidentemente que não desconhecemos nem negamos a existência de
organizações criminosas, inclusive em nosso País, mas é preciso que, antes de
qualquer coisa, dê-se um conceito legal para aquelas estruturas criminosas, tal
como fez, por exemplo, o Código Penal, no art. 288, ao conceituar o crime de
quadrilha ou bando, e a Lei nº. 11.343/06, no art. 35 (Associação para o
Tráfico – Lei de Drogas).
Obviamente, e até como uma decorrência do tráfico internacional de
drogas e da lavagem de capitais[1], mas não somente por causa deles, o crime
organizado vem desde algum tempo se desenvolvendo em todo o mundo. Hoje, apenas
para citar alguns exemplos, temos os grandes cartéis das drogas, inclusive na
América Latina, as máfias italiana, japonesa e russa, os traficantes de armas,
o terrorismo, etc, etc., tudo facilitado pela globalização e pelos seus
respectivos instrumentos de atuação.
A questão situa-se, no entanto, na grande dificuldade, inclusive
doutrinária, de estabelecer exatamente o conceito de crime organizado, até para
que se possam utilizar adequadamente os meios repressivos postos à disposição
da Polícia e da Justiça criminal no combate a este tipo de atividade e, ao
mesmo tempo, impedir que sejam aplicados tais atos investigatórios
(evidentemente mais drásticos e gravosos) em casos que não são especificamente
de “organização criminosa”.
Em trabalho anterior e já vetusto, arriscamo-nos (equivocadamente,
hoje reconhecemos), a conceituar crime organizado como uma estrutura criminosa
formada por um número razoável de integrantes, ordenados de forma estável e
duradoura, tendo como finalidade precípua a prática de um determinado ilícito
penal, continuadamente, utilizando-se quase sempre do mesmo modus operandi,
além de violência e da alta tecnologia, inclusive bélica.
Para alguns existiria esta definição legal em nosso ordenamento
jurídico por força do Decreto nº. 5.015/2004, que promulgou a Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, onde se lê que se
considera “Grupo Criminoso Organizado” aquele “estruturado de três ou mais
pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de
cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a
intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro
benefício material.” Não concordamos com tal entendimento, pois uma norma
internacional de caráter incriminadora não pode adentrar o nosso ordenamento
jurídico. Neste sentido, a exegese dos §§ 2º. e 3º. do art. 5º. da Constituição
Federal. Neste sentido, fundamental transcrevermos a lição de Luiz Flávio
Gomes:
“1º) a definição de crime organizado contida na
Convenção de Palermo é muito ampla, genérica, e viola a garantia da
taxatividade (ou de certeza), que é uma das garantias emanadas do princípio da
legalidade; 2º) a definição dada, caso seja superada a primeira censura acima
exposta, vale para nossas relações com o direito internacional, não com o
direito interno; de outro lado, é da essência dessa definição a natureza
transnacional do delito (logo, delito interno, ainda que organizado, não se
encaixa nessa definição). Note-se que a Convenção exige "(...) grupo
estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando
concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou
enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um
benefício econômico ou outro benefício material". Todas as infrações
enunciadas na Convenção versam sobre a criminalidade transnacional. Logo, não é
qualquer criminalidade organizada que se encaixa nessa definição. Sem a
singularidade da transnacionalidade não há que se falar em adequação típica, do
ponto de vista formal; 3º) definições dadas pelas convenções ou tratados
internacionais jamais valem para reger nossas relações com o Direito penal
interno em razão da exigência do princípio da democracia (ou garantia da lex
populi). Vejamos: quando se trata das relações do indivíduo com organismos
internacionais (com o Tribunal Penal Internacional, v.g.), os tratados e
convenções constituem as diretas fontes desse Direito penal, ou seja, eles definem
os crimes e as penas. É o que foi feito, por exemplo, no Tratado de Roma (que
criou o TPI). Nele acham-se contemplados os crimes internacionais (crimes de
guerra, contra a humanidade etc.) e suas respectivas sanções penais. Como se
trata de um ius puniendi que pertence ao TPI (organismo supranacional), a única
fonte (direta) desse Direito penal só pode mesmo ser um Tratado internacional.
Quem produz esse específico Direito penal são os Estados soberanos que
subscrevem e ratificam o respectivo tratado. Cuidando-se do Direito penal
interno (relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro) tais
tratados e convenções não podem servir de fonte do Direito penal incriminador,
ou seja, nenhum documento internacional, em matéria de definição de crimes e
penas, pode ser fonte normativa direta válida para o Direito interno
brasileiro. O Tratado de Palermo (que definiu o crime organizado
transnacional), por exemplo, não possui valor normativo suficiente para
delimitar internamente o conceito de organização criminosa (até hoje
inexistente no nosso país). Fundamento: o que acaba de ser dito fundamenta-se
no seguinte: quem tem poder para celebrar tratados e convenções é o Presidente
da República (Poder Executivo) (CF, art. 84, VIII), mas sua vontade (unilateral)
não produz nenhum efeito jurídico enquanto o Congresso Nacional não aprovar
(referendar) definitivamente o documento internacional (CF, art. 49, I). O
Parlamento brasileiro, de qualquer modo, não pode alterar o conteúdo daquilo
que foi subscrito pelo Presidente da República (em outras palavras: não pode
alterar o conteúdo do Tratado ou da Convenção). O que resulta aprovado, por
decreto legislativo, não é fruto ou expressão das discussões parlamentares, que
não contam com poderes para alterar o conteúdo do que foi celebrado pelo
Presidente da República. Uma vez referendado o Tratado, cabe ao Presidente do
Senado Federal a promulgação do texto (CF, art. 57, § 5º), que será publicado
no Diário Oficial. Mas isso não significa que o Tratado já possua valor interno.
Depois de aprovado ele deve ser ratificado (pelo Executivo). Essa ratificação
se dá pelo Chefe do Poder Executivo que expede um decreto de execução
(interna), que é publicado no Diário Oficial. É só a partir dessa publicação
que o texto ganha força jurídica interna (Cf. Mazzuoli, Valério de Oliveira,
Curso de Direito Internacional Público, 2. ed., São Paulo: RT, 2007, p. 291 e
SS). Conclusão: os tratados e convenções configuram fontes diretas (imediatas)
do Direito internacional penal (relações do indivíduo com o ius puniendi
internacional, que pertence a organismos internacionais - TPI, v.g.), mas
jamais podem servir de base normativa para o Direito penal interno (que cuida
das relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro), porque o
parlamento brasileiro, neste caso, só tem o poder de referendar (não o de criar
a norma). A dimensão democrática do princípio da legalidade em matéria penal
incriminatória exige que o parlamento brasileiro discuta e crie a norma. Isso
não é a mesma coisa que referendar. Referendar não é criarex novo.”[2]
A propósito, após advertir
que o conceito de criminalidade organizada possui “contornos muito imprecisos e
cheios de relativismos”, Montalvo estabelece algumas condições fundamentais
para que bem se caracterize a existência de uma organização criminal, a saber:
“la existencia de un centro de poder, donde se toman las decisiones”;
“actuación a distintos niveles jerárquicos”; “aplicación de tecnología y
logística”; “fungibilidad o intercambialidad de los miembros”; “sometimiento a
las decisiones que emanan del centro de poder”; “movilidad internacional” e
“apariencia de legalidad y presencia en los mercados como medio de transformación
de los ilícitos benefícios”.[3]
Exatamente por causa desta
“mobilidade internacional” da qual se refere o jurista espanhol e que
indiscutivelmente caracteriza a organização criminosa, é que, como dizia o Juiz
italiano Falcone, “la correcta política-criminal frente a la delicuencia
organizada es la destrucción del poder económico de estas organizaciones a
través de la cooperación internacional efectiva y eficaz”.[4]
Pois bem.
É cediço que no Brasil foi
promulgada há quase duas décadas a Lei nº. 9.034/95, que dispõe sobre a
utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações
praticadas por organizações criminosas. Esta lei procurou definir e regular os
meios de prova e os procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes
de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações
criminosas de qualquer tipo. Por ela, permite-se, em qualquer fase da
persecução criminal, ou seja, tanto na investigação criminal, quanto na
instrução crimina, e sem prejuízo dos meios de prova já previstos na legislação
processual brasileira, os seguintes procedimentos de investigação:
1) A ação controlada, que
consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por
organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e
acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do
ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações. Permite-se,
por exemplo, que não se prenda os agentes desde logo, ainda que em estado de
flagrância, quando há possibilidade de que o diferimento da medida possa
ensejar uma situação ainda melhor do ponto de vista repressivo. Exemplo: a
Polícia monitora um porto à espera da chegada de um grande carregamento de
cocaína, quando, em determinado momento, atraca um pequeno bote com dois dos
integrantes da organização criminosa (já conhecidos) portando um saco plástico
transparente contendo um pó branco, a indicar ser cocaína. Pois bem: os agentes
policiais, ao invés de efetuarem a prisão em flagrante, pois há um crime visto,
procrastinam o ato, esperando que a “grande carga” seja desembarcada em um
navio que se sabe virá dentro em breve. É o chamado flagrante diferido ou
protelado. Em suma, evita-se a prisão em flagrante no momento da prática do
delito, a fim que em um momento posterior, possa ser efetuada com maior
eficácia a prisão de todos os participantes da quadrilha ou bando, bem como se
permita a apreensão. Há quem faça diferença entre a ação controlada e a chamada
“entrega vigiada”, distinção que não enxergamos. Assim, Mariângela Lopes
Neistein e Luiz Rascovski diferenciam: “A entrega vigiada é a técnica
consistente em permitir que remessas ilícitas ou suspeitas de entorpecentes ou
outras substâncias proibidas circulem pelo território nacional, bem como dele
saiam ou nele ingressem, sem interferência impeditiva da autoridade ou seus
agentes, mas sob sua vigilância. Tudo com o fim de descobrir ou identificar as
pessoas envolvidas no cometimento de algum delito referente ao tráfico dessas
drogas, bem como prestar auxílio a autoridades estrangeiras nesses mesmos
fins.” Já a “ação controlada consiste, conforme artigo 2º, da Lei 9.034/95, em
retardar a interdição policial do que se supõe tratar-se de ação praticada por
organizações criminosas ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e
acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do
ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações. A ação
controlada é uma exceção ao flagrante obrigatório previsto em lei para a
autoridade policial e seus agentes. Refere-se ao chamado flagrante diferido, ou
prorrogado ou, ainda, postergado, situação em que o policial, por autorização
legal, pode aguardar o melhor momento para prender uma pessoa em flagrante,
para obtenção de um maior número de provas. Assim, a ação controlada é
utilizada para a investigação de todo e qualquer crime que praticado por
organizações criminosas. Ao contrário, a entrega vigiada, conforme salientado,
é um meio de investigação típico do crime de tráfico internacional de
entorpecentes, em que é autorizada o controle do tráfego de drogas que circulem
dentro ou fora do país.”[5]
2) O acesso a dados,
documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais. Nesta
hipótese, ocorrendo a possibilidade de violação de sigilo preservado pela
Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz,
adotado o mais rigoroso segredo de justiça. Ainda neste caso, para realizar a
diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza da
função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo. Permite
a lei que o juiz, pessoalmente, fará lavrar auto circunstanciado da diligência,
relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos
documentos que tiverem relevância probatória, podendo para esse efeito,
designar uma das pessoas referidas no parágrafo anterior como escrivão ad hoc.
O auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar
seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter
acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa, que não poderão dele
servir-se para fins estranhos caso de divulgação.
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